Igreja do Rosário
Rodolpho Teophilo deixou registrado no livro Scenas e Typos, impresso em 1919 por Assis Bezerra na Typographia Minerva, o ritual festivo dos negros na Igreja do Rosário e o cotidiano das missas comuns.
Conta o texto que se intitula Através do passado:
"Eu ouvia missa dominical na Igreja do Rosário, em que me baptisaram, havia mais de meio século. Este pequeno templo, antes de edificado a Sé, servia de matriz.
Frequentavam-n'o então o governador da capitania e a élite da cidade, composta de portuguezes.
Era também a igreja dos escravos, mas isto uma vez no anno. Tinha patrimonio e irmandade. Celebrava-se nella a festa da padroeira, com missa cantada e assistencia real. Ainda alcancei esse tempo, que já vai longe. Era o dia dos captivos o dia 6 de janeiro, dia de Reis.
Em seu dia, esses desgraçados eram livres, tanto que tinham patria como os seus ioperantes.
A' hora da missa, seguiam para a igreja o rei, a rainha e a côrte. O rei era um preto já idoso, de manto, sceptro e corôa. A rainha, uma escrava, meio velha, acompanhada de suas damas de honor. Na Capela-mór estava armado o thono, em que se deviam sentar suas majestades.
Logo que chegava o rei com a sua côrte, entrava a missa, que era cantada, com repiques de sinos e foguetes. O casal de escravos sentava-se no thono com ares de quem estava convencido da realidade da scena, representada também pelos reis dos brancos tão ou mais ridiculos de sceptro e corôa do que elle. Acabada a missa, sahia o cortejo real de cidade a fóra até o palácio, em que passava o resto do dia a comer, a beber, a dansar, festejando as poucas horas de liberdade que todos annos lhe concediam os senhores da terra, que primeiro libertou os seus escravos.
Fortaleza nesse tempo era uma aldeia, as casas mal acabadas, baixas, as ruas tortas, como as que ainda hoje existem na Travessa do Rosário, que vai sahir na Praça dos Voluntarios. O cunho de belleza que tem hoje a cidade deu-lh'o o boticario ferreira, quando Presidente da Camara Municipal.
Fortaleza era edificada em um areal sáfaro, como se vê ainda hoje nos suburbios, o que muito difficultava o transito.
As senhoras de distincção iam à missa em palanquim. Entre estas estava minha avó paterna, para quem o marido, o portuguez Manoel José Theophilo, negociante abastado, mandara vir da terra um muito lindo.
Comprára uma parelha de escravos, paracidos, como se fossem cavallos de sége. Aos domingos, lá iam aquelles desgraçados, atrelados, carregando a senhora para a igreja. Quando minha avó me contava esta historia, eu, que era tão abolicionista quanto ella escravagista, condemnava aquella barbaridade; a velhinha ria-se e dizia-me que o escravo vinha do começo do mundo."
*Foi respeitada a grafia original do texto impresso em 1919.
Publicado no Jornal Diário do Nordeste em 09 de abril de 2006.
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